Esse não é o primeiro texto a falar sobre isso, muito menos será o último. Diversos artigos apontam a inconsistência de vender políticas urbanas que favoreçam o automóvel como soluções de mobilidade. Eu mesmo escrevi em 2021 sobre a necessidade de pararmos de construir viadutos e dizer que eles vão resolver os problemas de mobilidade. Porém, recentemente, a Superintendência Municipal de Transportes e Trânsito (SMTT) de Maceió, autarquia vinculada à prefeitura, abriu uma consulta pública para questionar a população sobre a abertura de ruas no maior parque linear da cidade, o Corredor Vera Arruda. O objetivo da proposta é melhorar a “mobilidade” e “fluidez” da região, que “sofre” com congestionamentos nos horários de pico.
O Corredor Vera Arruda é um espaço de lazer e esportes com quase 1,5 quilômetro de extensão. A área possui 15 ruas, das quais apenas duas são acessíveis para veículos. A história da criação do Corredor Vera Arruda remete à implantação do Loteamento Stella Maris no início da década de 1980. Embora a construção do Corredor tenha ocorrido apenas nos anos 2000, desde o princípio já se planejava a área central do loteamento como um espaço de convivência destinado à população.
Esse espaço se formou graças às ruas projetadas como “sem saída”, que permitem apenas o tráfego local residencial, com retornos em cul-de-sac. Assim, uma grande faixa de área verde se criou no centro do terreno com o objetivo de ser um espaço de lazer para a população, integrando todo o loteamento.
Porém, mesmo não sendo o objetivo original do projeto, a ideia de abrir ruas no corredor não é nova. Em 2019, a própria SMTT já havia tentado e desistido do projeto após críticas da comunidade local. Agora, em 2023, a proposta voltou a ser apresentada pelo órgão e novamente foi criticada pela comunidade.
Essa não é a primeira vez que a gestão atual da SMTT de Maceió propõe medidas que só favorecem o usuário do automóvel. Meses atrás a superintendência iniciou a ampliação da capacidade viária — alargamento — da principal avenida da cidade, a Durval de Góes Monteiro. A adição de duas novas faixas, em cada lado da via, foi justificada do mesmo modo, para melhorar a “mobilidade” e o “trânsito” da região.
Por mais que possa parecer algo lógico, a história da engenharia de transportes prova que a relação entre as propostas da SMTT de Maceió e melhorias na mobilidade não passam de falácias. Muitas vezes, a obra não só não resolve o problema de mobilidade como também o agrava.
Embora o que eu esteja escrevendo possa parecer algo recente para muitos, a discussão é antiga. Por exemplo, em 1963, Colin Buchanan alertou sobre o aumento do número de automóveis nas cidades da Inglaterra e sugeriu a necessidade de agir para abordar o problema.
Ele discutiu os desafios e as limitações de construir mais estradas e rodovias, o que poderia exigir a desapropriação e reconstrução de bairros inteiros, gerando impacto negativo no meio ambiente e na qualidade de vida dos moradores. Em vez disso, ele propôs que os políticos considerassem outras soluções para lidar com o congestionamento, como a redução do uso de automóveis nas áreas urbanas.
Porém, o que se observa em casos como esse do Vera Arruda é um domínio de abordagens centradas somente na previsão da demanda futura de viagens e na provisão de infraestrutura suficiente para atender a essa demanda, ignorando os problemas relacionados ao aumento da frota de veículos na cidade.
Isso inclui a construção, ou ampliação, das infraestruturas existentes, como rodovias, avenidas, viadutos e etc. A lógica subjacente é que, ao prever a demanda e fornecer a infraestrutura adequada, se possa alcançar uma viagem mais rápida e eficiente, ao mesmo tempo em que se reduzem os custos da viagem, incluindo o custo de tempo.
Como colocado pelo Professor Eduardo Vasconcellos em seu livro “Transporte urbano, espaço e equidade: Análise das políticas públicas”, abordagens centradas somente na previsão da demanda futura utilizam conceitos puramente técnicos, sem considerar enfoques sociais e políticos, oferecem somente soluções imediatas para os conflitos de trânsito e são incapazes de pensar a longo prazo.
Essas metodologias são baseadas em técnicas sofisticadas de planejamento fundamentadas em um conjunto de métodos de previsão, onde se entende que o planejamento de transportes é uma atividade técnica completa por si só. Nesse caso, modelos de projeção de demanda são amplamente utilizados como ferramenta para prever a demanda futura de transporte e desenhar planos para atender a essa suposta demanda.
A crítica aqui é como esse tipo de abordagem, somente baseado em previsão, pode nos levar a conclusões equivocadas. Para explicar, vou usar um exemplo com uma das citações mais famosas da Engenharia de Transportes.
Digamos que você percebe que está ganhando peso de forma mais rápida do que antes e decide que precisa comprar um cinto maior para acomodar a mudança. A previsão de que você precisará de um novo cinto é correta, mas a compra de um novo cinto não resolve o problema subjacente, que é o ganho de peso excessivo.
Da mesma forma, alargar uma rua congestionada — ou abrir uma rua no meio do Vera Arruda — pode aliviar temporariamente o tráfego, mas não aborda as causas fundamentais do congestionamento, como o uso excessivo de carros ou a falta de opções de transporte público. Nesse caso, a abertura da rua a médio ou longo prazo pode até gerar efeito contrário.
Vamos supor que você mora próximo ao Corredor Vera Arruda em Maceió e precisa ir ao supermercado. Depois de avaliar suas opções de deslocamento, você descobre que a forma mais fácil e rápida de chegar ao supermercado é caminhando, já que as ruas são sem saída e o trânsito na região é muito congestionado, o que faria você gastar mais tempo se deslocando de automóvel.
Agora, imagine que a prefeitura decidiu abrir ruas no Corredor Vera Arruda para tentar aliviar o trânsito e reduzir o congestionamento. Com a abertura das ruas, agora você tem a opção de ir ao supermercado de automóvel em menos tempo do que indo a pé. Então, você decide deixar de caminhar e passa a usar o automóvel para ir ao supermercado.
O que aconteceu foi que, a longo prazo, essa abertura de ruas, que parecia uma solução rápida e fácil para o congestionamento, acabou atraindo e gerando mais viagens de automóveis na região e gerando novos congestionamentos.
Assim, quando o historiador Lewis Mumford disse “combater o congestionamento alargando vias é como combater a obesidade afrouxando o cinto”, ele estava nos alertando que a solução não está apenas em aumentar a capacidade viária, mas sim em entender as causas e consequências dos congestionamentos.
Por exemplo, Maceió é uma cidade que enfrenta uma tragédia urbana ambiental que provocou a migração de mais de 40 mil pessoas de vários bairros da cidade, mais próximos da área central, para bairros mais afastados.
Diversos condomínios e loteamentos estão tendo que ser criados em regiões periféricas, sem sistema de transporte público eficiente, para atender o aumento da demanda por moradia. A cidade não elaborou o Plano de Mobilidade e está com o Plano Diretor desatualizado.
Fica evidente que as soluções propostas pela SMTT, como a abertura de ruas no Vera Arruda e a adição de novas faixas na maior avenida, podem ser comparadas ao afrouxamento do cinto. Elas são soluções superficiais e não abordam o problema de mobilidade da cidade como um todo. Assim como afrouxar o cinto pode aliviar temporariamente o desconforto causado pelo aumento de peso, mas não resolve o problema da obesidade.
Para combater o aumento de peso, seria necessário adotar medidas mais amplas e duradouras, como uma alimentação saudável e a prática regular de exercícios físicos. Da mesma forma, para combater o problema da mobilidade em Maceió, seria necessário adotar medidas mais amplas e duradouras, como a elaboração e implementação de um Plano de Mobilidade Urbana Sustentável, que leve em consideração as necessidades reais da população, a atualização do Plano Diretor da cidade e melhorias estruturais do sistema de transporte público.
É preciso ter uma visão mais abrangente e integrada da mobilidade urbana, que leve em conta não apenas aspectos relacionados ao tráfego e ao trânsito de veículos, mas também questões sociais e de uso do solo urbano, levando em conta as necessidades reais das comunidades afetadas.
Nesse sentido, a Política Nacional de Mobilidade Urbana orienta que as soluções de mobilidade devem priorizar os modos de transporte não motorizados e o transporte público coletivo em detrimento do transporte individual motorizado.
Portanto, qualquer solução de mobilidade urbana deve abarcar estratégias de planejamento integrado e multidisciplinar levando em consideração aspectos relacionados ao uso do solo e desincentivo ao uso do automóvel. As prefeituras não podem ignorar que a maior parte da população se desloca usando o transporte público, a pé ou de bicicleta, e devem considerar essas realidades ao desenvolver soluções de mobilidade em suas cidades. Somente assim será possível tratar o problema de “obesidade”, ou congestionamento, no nosso país.
Via Caos Planejado.